Bom, eu não sei direito como começar esse troço. Vou puxar uma do baú – tomara que cole...
BALDEAÇÃO
Eu voltava de Ouro Preto. Sozinho. Deviam ser três, talvez quatro da manhã – não, pensando melhor acho que era mais cedo –, e eu estava em alguma rodoviária ordinária de Minas, nessa hora em que esse ambiente já agudamente ordinário se permite ter ressaltadas as qualidades que o fazem assim. Sentava-me em uma daquelas estóicas e tão tristonhas cadeiras, que justamente, e por falta de opção melhor, são alcunhadas cadeiras de rodoviária, dispostas em suas resignadas e não menos tristonhas fileiras. Me achava mais ou menos isolado do resto dos meus circunstanciais convivas de insônia. É possível que voltasse de outro lugar; pra falar a verdade, não me lembro exatamente. Nem sei porque resolvi escrever isso. Acho que é pra não esquecer. Bem, estava ali fazendo alguma baldeação, num domingo de madrugada, voltando ao Rio pra dormir poucas horas e trabalhar na manhã seguinte. Muita luz, aquelas fluorescentes, muito brancas (verdes), e algum barulho naqueles botecos de rodoviária.
Um a cada três fileiras de assentos, estavam, presos no teto – uma melancólica armação de metal – e meio esquecidos como todo o resto do lugar, alguns monitores de tevê. Econômicas 14 polegadas. Era fim de ano e ia lá uma restrospectiva das notícias mais “importantes” daquele, que era um dos últimos anos do século XX. Eu esperava e esperava e, por vezes, olhava o troço. Lá pelas tantas – eu não ouço a chamada da máteria – aparece um desses pássaros marinhos, todo coberto de óleo, óbviamente nas últimas; ele está no colo de um sujeito, em suas mãos, pescoço caído, vergado, muito plástico, como uma rosa murcha, um cabo de guarda-chuva; o monocórdio locutor, de voz tão conhecida (domingos de noite amarela e sonolência, reminiscência pueril), acaba de falar algo que pretendia sério e emocionado, um alerta; de repente sobe o som da cena, a câmera vai pro rosto do cara – um biólogo, imagino; ele chora. Copiosamente. Muito mesmo. Olha o que fizeram!, olha o que fizeram! Olha… Antes de dar por mim, meus olhos já estão marejados. Faço esforço pra não ir além.
Penso que foi a coisa mais sincera que eu já vi. O sujeito- não falava com a câmera, com público; ele se dirigia ao cameraman, ao repórter, não acreditava, queria ver se eles podiam, se eles sabiam como, por que. E eles lá, filmando tudo, numa obra paralela àquela cujos espólios documentavam, calados; grande matéria!
Um homem precisa compreender o mundo em que vive. Mas acho que sou dos que também não entendem. [resolvi escrever isso ][é pra não esquecer.]