Foi uma dessas vans que vão pra Barra. O rapaz, na hora de sempre, ia voltando da faculdade, pensando na vida e olhando pro chão. Nessa ia também atravesando a rua e o sinal até estava fechado e tudo, mas a van, que queria passar no que do amarelo passasse ao vermelho e contava decerto com o mínimo de etiqueta carioca — pois há que se saber portar-se no Rio, um sinal vermelho só é vermelho depois de alguns segundos e, dependendo da hora, nunca —, continuou com tudo pra cima dele. O cara fez um movimento muito plástico e sei lá como foi parar atrás do veículo, os braços retorcidos e as pernas cruzadas, no centro de uma poça de si mesmo que se expandia e trazia pra fora dele tudo que devia continuar dentro, mas isso antes, porque agora tanto fazia. O pessoal da van saiu todo pra ir olhar o troço junto com quem já estava ali perdendo a hora de almoço, e, o motorista, esse vinha, sem ter visto ainda o quadro, pronto pra reclamar com o coitado que isso não se faz, você me atrasou, tenho mais 20 corridas e você tinha que no mínimo ter pulado fora do meu caminho. No entanto desistiu quando viu a almôndega com quem ia argumentar. Deve inclusive ter ficado muito sentido e triste, porque a primeira coisa que fez, e imediatamente, foi entrar na van e ir embora a cem, deixando todo mundo ali, os passageiros e a almôndega. Na certa foi chorar o morto ou buscar ajuda, pobre otimista, tão prestativo… Eu, do meu canto, na segurança da calçada, donde, na hora do acidente, esperava o sinal passar do vermelho pro realmente vermelho e donde não tinha saído, via vez por outra, nas ocasionais janelas que se abriam na gravidade da multidão concentrada ao redor do morto, coisas exquisitas. Acho que a cabeça tinha-se esfacelado, pois muito do que o tipo devia estar carregando nela no momento, encontrava-se espalhado pela pista. Os blocos mais imediatos ao corpo eram estruturados; um filme que ele tinha visto, a semana de provas estava chegando, que fome! e pagar o curso de inglês. Logo adiante, em pedaços menores, e em tom ligeiramente diferente — pois pra mim tudo na vida é questão de tom e intensidade —, a coisa mudava um pouco de figura: havia aquela menina pra qual ele ia ligar pra sair no fim de semana, desse sábado não passava, outro filme, esse ele ia fazer com o pessoal e já tava tudo planejado, tudo por ali, jogado. O cachorro, que há muito ele não levava pra passear e que estava esquecido, mas que do qual gostava muito e hoje sem falta eles iam sair juntos; a sua vó, que vivia sozinha longe a beça e pra quem estava sempre esquecendo de ligar, coitada, e ela fica tão contente quando ele liga; um pouco de vergonha de sua magreza exagerada e seus braços irremediavelmente finos, tenho que começar um esporte; um trecho daquela música, tão bonita, vai triturar teus sonhos tão mesquinhos/ vai reduzir as ilusões a pó, que era muito batida mas muito sincera e de que ele gostava tanto. O que estava mais distante — não dava mais pra entender direito — eram uns pedacinhos bem pequenos de sonho e alguma dor. Mas, eu acho, tanto uma coisa como outra, são da idade, não?
Resolvo ir embora dali. É muito do mundo de uma vez só pro meu gosto. Viro-me e vou andando, e nesse movimento, olhar meio penso, percebo no meu sapato um pouquinho de saudade, saudade que era de coisa nenhuma, de algo incerto, de vida não vivida e que lhe mastigava tanto o peito, tanto. Desvio o olhar e continuo indo, sem coragem de pegar uma folha seca do outono carioca e limpar aquilo; carregando comigo um troço que não é meu e que, agora, passa a pesar no meu peito também.
Tomara que eu encontre um engraxate pra limpar isso de mim, essa pontinha de sentimento que me grudou na pontinha do sapato.