Todo dia, o campônio acordava cedinho, e, depois do curto ritual que sua higiene pessoal lhe requeria, vestia-se pra mais uma extenuante jornanda de labuta junto à terra. Era nessa, mais que em todas suas outras horas, que se manifestava de forma muito sólida sua hereditária prudência de homem do campo: era o momento de calçar as botas. Mas colocar as botas não se resumia a um ato tão simples; desde seu mais remoto antepassado, o camponês sabia, conhecimento sedimentado, que não se pode colocar as botas de qualquer jeito, sem mais nem menos – onde é que já se viu? Era assim, de maneira quase intuitiva, que antes de lhes enfiar os pés, ele batia as surradas botinas vigorosamente no assoalho e punha-se a examiná-las minusciosamente. E isso tudo por um claro e justificado motivo: o escorpião. O medo genético. Era um só esse seu escorpião, flagelo nos calçados do campo, não um, mas O Escorpião. Não era aracnídeo, não tinha forma definida – até porque ele nunca tinha visto a criatura – era só o nome de um receio, de um sentimento particular e de uma rotina diária.
Tal era a vida do sujeito, que acho que posso dizer que a única coisa que se apresentava como uma variável concreta no seu cotidiano era a possibilidade remota do bicho aparecer mesmo. Mas nunca aparecia; fosse porque ele tomava muitas precauções – das quais a revista matutina das botas era só o ápice e a confirmação -, fosse por fatores alheios a ele, a posição geográfica de seu casebre, o clima seco, fosse ainda tão somente sorte; o mais próximo que ele chegara desse capcioso animalzinho eram os causos dos amigos e os conselhos que perfaziam a história da família desde que uma das tais temíveis bestas deu cabo de um ta[...]tataravô seu, que [d]eus o tenha. Fora isso, nada; os humores do clima não eram surpresas pra ele. Nem o ciscar das das galinhas, nem o germinar das sementes. Ah, e não era casado – pois o comportamento da mulher poderia acrescentar-lhe ao dia um elemento bastante inconstante. Assim, percutir o precário piso da casa com as galochas era a única oportunidade que realmente tinha que jogar os dados.
Hoje o Escorpião apareceu. TUMP-TUMP as botas, e lá está de verdade. Mas o que fazer? Talvez devesse jogar alguma coisa sobre o troço – novamente: as botas –, talvez atear-lhe fogo. [Faz] Não? Correr... Mas o bicho é tão bonito e tão reluzente. Essa aparição sobrenatural é bem mais do que ele pode compreender. Não sabe o que fazer. [Nada.] Nem quando o Escorpião anda em direção ao seu pé descalço. Mais do que ele imaginou e certamente mais do que aquilo pra que ele estava preparado. Nem quando o monstro começou a subir-lhe a perna [Faz alguma coisa!]. Mais, muito mais. Estivera algum dia preparado? Lembra-se de que nunca pensou no que fazer quando o dia viesse. Nem quando o danado ergue a cauda. Faz alguma coisa!, faz alguma coisa! Grita! E nem mesmo quando o Escorpião crava-lhe o ferrão no pescoço [alguma coisa!, faz]. Nada.