O mar. É um troço bonito. Tanta gente já disse tanto sobre ele. Sempre achei que pessoas inteligentes são as que sabem falar coisas bonitas, coisas profundas, sobre o mar... Eu, como nunca consegui, cedo descobri que não sou inteligente; mas tá tudo bem. Eu não me importo. Se não tenho coisas inteligentes pra dizer sobre o mar, pelo menos vivo aqui, quase dentro dele, desde que nasci. Tudo que sei falar dele é que é azul, muito azul e muitos azuis; que é grande, muito maior que eu e maior ainda que minha imaginação; que lá no fim das coisas ele se encontra com o céu, um pouco como eu no fim da tarde; e que é bonito, muito bonito. Tem vezes que penso que eu sou o mar também, um pouquinho dele. Todo dia, cedinho, quando o vento vai deixando a ilha pra trás e a jangada cada vez mais vai me levando lá pra onde se pode esbarrar com o céu mas nunca se chega, é isso que eu penso. Quando meu casebre some, e a praia, e as lembranças das pessoas que moram lá do outro lado da ilha mas que às vezes aparecem do meu lado só pra me aporrinhar, a mim e ao mar, aí é que eu sinto que é tudo uma coisa só. De vez em quando eu imagino como seria bom se minha jangada fosse um barco mesmo, maior, sólido e com motor, pra me levar mais pra longe no mar, pra eu entendê-lo melhor. Aí fico achando que minha jangada é que nem minha inteligência, e gostaria mesmo que ela pudesse me levar mais adiante, mais pra dentro do azul - e quem sabe assim eu pudesse falar coisas mais bonitas sobre o mar... Então lembro que eu não gosto do barulho do motor e que, por isso, o que eu posso ter é mesmo a minha jangada, que afinal de contas, fui eu que construí e que sempre me levou onde eu precisei ir. Sempre trouxe meus peixes direitinho até a praia. Depois, tem um momento em que tudo se acalma. É quando eu chego ali onde sinto estar longe o suficiente e amarro as velas. Jogo a rede e espero e tudo só flutua. É só um tempinho, mas faz um silêncio incrível e o sol me pesa as palpebras e reluz seu amarelo no azul e por um momento eu sei que eu entendo aquilo tudo, que eu entendo o mar; o que eu não sei é explicar, dizer. Mas eu sinto. Tudo ali. Mesmo sabendo que não tô tão longe, que não vejo a ilha mas ela tá logo ali. Penso que, de repente, se um poeta me visse lá de longe, ele entenderia também e saberia o que eu estou sentindo e diria coisas belas sobre o mar. Talvez seja pra isso que eu sirvo, só pra navegar, pra estar lá, não pra ver. Parte da paisagem. Deixar pra outro explicar. E eu volto, com a rede cheia o quanto o mar decidir, mas que sempre tem sido o suficiente, inclusive pra me fazer parte dele. E, depois que eu chego, que faço o que tenho que fazer, quando vem o fim da tarde e eu tô sozinho e sento pra ver o mar, eu fico um pouco triste de ver tudo aquilo e não saber o que falar, como falar, mesmo estando tudo na minha frente, a mesma coisa que outros poderiam transformar em poesia. Fica alguma coisa presa em mim que não sabe sair. Mas então eu me acalmo e penso que o mar não é poesia, é só o mar, e eu sei o que é o mar, eu sou o mar também. Penso que um dia, quando o mar decidir, eu vou soltar a vela da jangada e sair pra pescar e não vou voltar. O poeta vai ficar enterrado n'algum cemitério pra todos lembrarem dele sempre, mas eu vou virar mar. Aí, outro poeta vai escrever sobre o mar e vai estar escrevendo sobre mim também, e talvez ele até consiga dizer o que eu não posso. Mas aí eu vou ser mar.