Abaixo e começo a alisar o pelo preto e luzidio do animal; ele me mostra seus olhos amarelos e satisfeitos e aquelas nesgas de pupila, estreitas pela hora do dia. Do olhar à cauda, o bicho brilha inteiro de orgulho, pela presa, por minha aquiescência, e arqueia o dorso, ávido por receber mais cafuné. Ao seu redor, o passarinho é agora uma porção de bocados dispersos.
– Nhéuuu! – mia no meio daquele ronronar todo.
– Zecão, garoto…
– Por que cê tá fazendo isso?
– ?
– Carinho nele?
– Como assim?
– Ele matou o bichinho!
– E daí?
– Nem foi pra comer… Olha só…
– E o que cê quer que eu faça?
– Sei lá, bate nele.
– Eu não vou bater no meu gato. Ele não fez nada de errado.
– Porra, não?
Não. Ele é um gato. O livre arbítrio é uma fantasia criada pelo Homem. Ele não escolhe fazer isso; é sua natureza. Inclusive, pra ele, é um motivo de orgulho. Toda vez que caça alguma coisa, se ele tá feliz comigo, ele deixa aqui na porta. É um presente. E também mostra que ele tá feliz porque é um bom caçador e, dessa forma, um bom gato. Ele é feito pra isso. Ela não acha:
– Você tá é defendendo ele!
– Nada: no lugar dele, eu faria a mesma coisa. Quer dizer, qualquer um faria; como eu disse, ele não escolhe. Mas, se por acaso eu fosse um gato pensante, eu escolheria fazer isso. É pra isso que serve ser uma gato.
– Você diz isso só pra descordar de mim.
– Não. Eu acredito nisso. Na verdade, até pros humanos…
– Bem, a mim pouco importa; eu não gosto mais dele.
O bicho, alheio à celeuma, não sabe disso. Vai compartilhar sua felicidade também com ela, esfregando-se-lhe nas pernas. Ela tenta chutá-lo, mas o golpe o acerta apenas de esguelha. O gato é mais rápido que ela.
– Não faz isso!
– E tem mais; se você não fizer alguma coisa eu vou brigar contigo. Eu vou embora!
– Mas é o instinto dele…
– Conversa! Esse bicho é mau. Faz alguma coisa.
– Mas… se eu fizer, é como se eu tivesse censurando ele por ser um gato… – eu tento.
– Tô vendo que você não vai fazer nada. Então pode cancelar a noite de hoje. E quer saber?, e a viagem também!
– Por que você tá fazendo isso? – e agora sou eu quem pergunto.
– Não sei. Também não me interessa.
– Você tá me maltratando. Isso me faz sofrer… Cê sabe como essa noite é imporatante pra mim…
– Vou pra casa. Vou pensar. De repente é até melhor a gente dar um tempo.
– Mas eu te amo!
– Não sei. E nem se eu. Te amo, eu quero dizer. – seus olhos são tão negros como o pelo do gato. Só que brilham mais. E eu não sei dizer por que. O que é aquilo ali que os faz brilhar, que os faz cada vez mais incisivos e seguros enquanto penetram o meu olhar tão desprotegido. Não consigo evitar; logo estou chorando.
– Vou embora…
– Ele só faz isso por instinto… Ouve: é pelo mesmo motivo que eu não posso bater nele…
– Não se trata mais disso. Tchau!
– …e é pelo mesmo motivo que você faz isso comigo…
Mas ela já não ouve. Está longe. Cada vez mais.
– Miaauuu! – O gato não percebe o que aconteceu. Porque levou um chute.
Ficamos os dois ali, olhando a confusão que se tronou o passarinho. O engraçado é que o pardal em pedaços provavelmente entende o porquê de seu novo estado: tinha estado claro nos olhos do felino.
E eu entendo perfeitamente como o pardal se sente.