QUASE-CONTO EM CONSTRUÇÃO ESQUEMÁTICA E PLANO SEQÜÊNCIA
Ele e ela. Ele e ela nunca brigam. Nunca brigam, mas nesse dia brigaram. Tinham saído cedinho. Iam resolver um monte de coisas chatas. Quando saíram do estacionamento, tudo tava muito bem, passaram por um daqueles tipos que entregam papeizinhos na rua. “Dinheiro rápido”, essas coisas. Na frente de uma banca de jornal. O tal ofereceu a ele um dos troços e ele, naquele jeito estudado com que sempre recusava papeizinhos, recusou aquele também, sem parar de andar. Seguiram. [Segura o quadro, o mesmo plano. Saem pela esquerda. A vida continua passando. Cinco minutos, voltam pelo mesmo lado.] Daí a pouco, voltaram os dois, emburrados. Passaram novamente pelo gaiato dos papéis; olhando pro nada, esse ofereceu, de novo, o anúncio a ele. Ele de novo com seu gesto de repertório também. Os dois dedos, indicador e pai-de-todos, esticados e os outros meio dobrados numa negativa educada mas com certo desdém. Ela pára a vinte passos da banca. Ele para também. Quase-discutem. Voltam os dois, ela na frente ele atrás. Papelzinho, dois dedos, passam. Dessa vez ela não ia parar [não até sair de quadro], mas a cinco passos da banca, na direção oposta, ele parece mudar de idéia e a puxa pelo braço. No máximo cinco palavras ríspidas depois, ele tá voltando, ela atrás. Lá vai o sujeito entregar o pedaço de papel outra vez. Ele ensaia negar e, por um momento, olha perplexo pro outro. Passam. Na porta do estacionamento, eles conseguem parar outra vez. Discutem. E ele volta meio que fugindo, na frente, mas, mesmo sem olhar pra trás, não deixa de discutir. Quando vão passar pelo entregador, o cara começa a puxar o papel mais uma vez. Ele estaca. (Caralho, mermão! Não é possível que esse filhodaputa não perceba que sou eu que tô passando. Será que não tá claro que eu não quero essa merda? Porra, qualquer idiota vê que eu tô às turras com ela!) Respira e faz que vai recomeçar a andar (Só pra ver.); o outro faz que vai oferecer. Ele pula no pescoço do homem e começa a bater sua cabeça no chão. Se pudessemos olhar de perto, veriamos o sangue correndo geométrico por entre as pedras portuguesas. Os dentes pulando. [Nesse ponto você já deu fast-forward] Ele só desiste quando a polícia o remove de cima do agredido – que nunca mais vai entregar papel na rua. Aliás, nunca mais vai fazer coisa alguma.