Tinha um buraco no peito. enorme. E outro no estômago: dava pra ver do outro lado. Pra ele ver do outro lado, porque os outros não viam nada. Foi ao médico. Este, por meio de instrumentos, exames, constatou os buracos, mesmo sem vê-los. Que fazer? Olha, você vai morrer. Quando? Não sei; não era nem pra você estar vivo. O amigo também não via, mas acreditava. Costuma ser o bastante. Andavam na rua, os dois, uma tarde.
– Aaaai!
– Que foi, cara?
– Nada.
– Tá doendo, o troço?
– É.
– Vâmo pro hospital.
– Não, chega. Dói, mas passa. Já me acostumei. Sempre passa. O máximo que eles fazem é me dar algo pra dor: não tem muito o que fazer...
– Tem certeza? ... Bem, cê que sabe.
– Vem cá, dá uma força aqui...
[o outro se aproxima. o esburacado – eu vejo – se apóia no amigo. andam]
– Faz o seguinte: me ajuda a chegar até o bar do mudinho. Cê tem que trabalhar? Ótimo, então vâmo tomar uma cerveja.
[tempo] [bar, segunda garrafa] [às vezes se perguntava pra onde ia o que ingeria. mistério]
– A gente tá desfrutando os últimos anos da juventude. Tudo fica me lembrando que é hora de andar. Como vai a tua vida?
– Ah, sei lá, as coisas vão. Tenho tido trabalho. Até juntei uma graninha. Normal, nada demais. Tô feliz.
– Maneiro.
– E você.
– É.
– Fala aí.
– Nada pra falar. Esse é o problema, inclusive. Acho que acabei.
– Rá, besteira. Daqui a pouco esse troço dos buracos passa e fica tudo tranqüilo.
– Não, não é isso, não. Eu digo, não sinto mais nada, não tenho mais o que dizer. Nada sobre o que convencer ninguém.
– Pára de deprê!
– Não, cara, presta atenção: eu tô numa boa. Isso é que incomoda, mas é um fato, eu tô em paz. Só que nada aconteceu, nada frutificou, não construí nada. Mas não tô triste. Isso ficô pra trás junto com resto. O que tá rolando é que não faz mais diferença, sacô? Quando eu acordo não me importa mais se chove ou faz sol. Algo assim. Em tudo. Nem essa bosta dessa dor me aborrece.
– Melhor, né?
– É, deve ser. Acho que sim.
– Aí, vou ao banheiro.
– Hehehe... cê já pensou uma coisa, que quando cê voltar eu posso tá morto?
– Tsc, num fode!
– Ahahahaha
– Já volto. Pede outra.
[e foi ao banheiro]
[atrás dele os buracos do outro começaram a vazar e escorrer e expulsar em enxurrada toda aquela porcaria que tem dentro da gente] [que nojo.]