Não, minha senhora, tire suas crianças de perto de mim! Tire, pois que eu posso contaminá-las, você não vê?, com a fome. E que fome é essa que me verga o ser, a consciência? que exige pra si toda disciplina, uma nova e única, como um deus atormentado e sequioso de adoração? E que olhos tão translúcidos, que olhos mais famintos; são meus esses olhos que me assutam no reflexo? É como a peste, a fome dessas pupilas escuras, dando a quem não pediu e nem precisa, sem que se possa negar, um arroto azedo de vazio, um vazio multiplicado em desejo, salivando, salivando, salivando. A baba mal-cheirosa dessa volúpia escorre incontestada da necessidade torpe de um espírito ainda mais escuro. A fome é o animal mais voraz, mais perfeito, convertendo à sua religião – o tempo – tudo. Eu sou apenas um feroz acometido, a língua áspera e exacerbada, as mãos nervosas; um pastor dessa vontade que há muito não é minha. Contudo, não há mais alimento que encante meu desejo, não há mais objeto; só o sentimento da fome, tanto, que me perco. E ainda que eu soubesse com o que aplacar o ídolo maldito, com o que molhar sua carne vil, meu corpo já não poderia; a bolsa de couro está murcha; meu ventre seco, fruto desidratado, não pode mais conhecer o alento da saciedade, esse estado tão provisório e mais ainda improvável de que o demônio da fome se utiliza com vaidade sem, no entanto, pretender alcançar.
Não tem rosto. Não tem idade, esse espectro, só olhos e promessas. E o hálito negro e contagioso.